Lula mira Campos Neto e o BC em estratégia de alto risco para o Brasil

PRESSÃO - Campos Neto: atuação técnica até durante a eleição -

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Em meio ao frenesi eleitoral que se instalou no Brasil no segundo semestre do ano ado, o Banco Central transformou-se em um exemplo de estoicismo. A máquina pública rodava com um único objetivo, o de garantir a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O Congresso havia aprovado uma PEC permitindo ao governo usar recursos acima do teto de gastos para aumentar o valor do benefício social aos mais pobres e conceder auxílio a caminhoneiros e taxistas. Os impostos federais e até mesmo os estaduais para combustíveis foram cortados. A Petrobras ou a baixar preços para as refinarias. Em meio a tudo isso, o BC promoveu um aumento da taxa Selic para 13,75% com o objetivo de manter a inflação sob controle, mesmo na contramão das medidas tomadas pela máquina bolsonarista. Foi uma mostra inequívoca de independência e da priorização de critérios técnicos. Chefe da autarquia, Roberto Campos Neto, se tornou o primeiro presidente do BC autônomo, mudança aprovada pelo Congresso e sancionada por Bolsonaro em 2021, depois de mais de duas décadas de sua proposição. Antes do aumento nos juros acontecer, Campos Neto sinalizou à alta cúpula governista a decisão. O presidente não se manifestou, mas representantes do governo, tanto da ala política quanto da econômica, fizeram pressão.

Desde então, a Selic atravessou a troca presidencial no mesmo patamar. Era esperado que as reclamações quanto aos juros altos seguiriam na nova gestão. Mas a virulência dos ataques surpreendeu e escalou de forma inaudita nos dias seguintes à primeira reunião de definição de juros empreendida pelo BC, no início de fevereiro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não gostou dos termos do comunicado da instituição que justificava a manutenção da alta dos juros, subiu o tom e ou a alvejar o BC quase diariamente em seguidas declarações. Primeiramente, Lula reclamou da meta de inflação baixa que estimulava juros altos, e ainda alegou que poderia rever a autonomia do órgão a partir 2025, logo depois do fim do mandado do “cidadão” que o comandava. Depois, chamou de “vergonha” o patamar dos juros. Ato contínuo, pediu uma vigilância da situação pelo Senado, pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pela ministra do Planejamento, Simone Tebet. Em meio aos ataques, Haddad tentou contemporizar publicamente o destempero presidencial, declarando que a ata da reunião do BC, divulgada depois do documento que atraiu a fúria do mandatário, havia sido mais “amigável”.

Mas a sinalização agressiva serviu para atiçar a militância governista — curiosamente, uma estratégia similar à do ex-presidente Jair Bolsonaro. O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) publicou em suas redes sociais: “O Brasil tem a maior taxa de juro real do mundo. Quem ganha com isso?”. Gleisi Hoffmann, presidente do PT e uma das vozes que vêm influenciando Lula na direção errada, criticou: “Ter mandato não significa não ter responsabilidade com um país que precisa crescer urgente”. O PSol apresentou um projeto de lei para retirar a autonomia do BC. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) levou a discussão a um terreno mais exótico, ao apresentar um ranking comparando a taxa de juros de 13,75% e inflação em 6,47% do Brasil com a Turquia, de juros de 9% e inflação de 84,39%, como forma de argumentar que taxas altas não controlam a inflação. Ele provavelmente não percebeu que o exemplo turco reflete justamente o desastre de um banco central controlado por um governante de poucos escrúpulos. Em março de 2021, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, demitiu o presidente da instituição, que havia levado as taxas a 19% — o terceiro afastado em dois anos. A substituição causou menos juros e muito mais inflação.

Ainda há esperanças de que Lula reduza o disparo de impropérios contra Campos Neto e recue do negacionismo econômico que encampou nos últimos dias. Acompanhando o presidente em viagem aos Estados Unidos, a partir desta quinta-feira (09), Haddad deve tentar sensibilizar o presidente para os riscos de tal tumulto. Em sua preleção poderia usar, por exemplo, o fato do tema da autonomia dos BCs já ter sido pacificada em outros países da América Latina — inclusive os socialistas. O Peru, hoje enrolado em uma crise política e institucional, cresce de forma consistente há cerca de três décadas, tendo multiplicado o seu PIB em seis vezes no período. O presidente do BC local, Julio Velarde, está no posto desde 2006 e a estabilidade atravessou governos de direita e de esquerda, impeachments, golpes e até o suicídio de um ex-presidente, graças à blindagem da economia. No Chile, o presidente esquerdista Gabriel Boric escolheu o presidente do BC do governo anterior como o seu ministro da Fazenda. “Existe uma ampla literatura acadêmica desde os anos 1990 apoiando a independência e autonomia dos bancos centrais. É amplamente aceito entre os economistas que a independência dos BCs os protege de pressões políticas, especialmente no fim dos mandatos”, defende o ex-diretor do BC Tony Volpon. “É comum que políticos critiquem os presidentes dos BCs. Se a crítica permanecer no nível verbal, o mercado se acostumará, mas, se ar para ação, podem ocorrer problemas”. No caso brasileiro, o mercado acompanha com atenção um movimento que indicará as intenções do governo. No próximo mês está prevista a troca de dois diretores da instituição. Se Lula forçar a escolha por nomes mais alinhados a ideias que defendem juros artificialmente baixos será um péssimo sinal.

A obsessão do presidente com os juros altos chama particularmente a atenção, uma vez que o atual ocupante do Palácio do Planalto adotou em sua primeira Presidência, iniciada em 2003, uma postura bem mais comedida com relação às taxas estabelecidas pela instituição — naquele tempo a taxa era o dobro da atual. Na época, as críticas contra o chefe do BC, Henrique Meirelles, vinham apenas do vice-presidente José Alencar e de políticos do PT na forma de chumbo grosso. Hoje, além de Gleisi Hoffmann, o bunker anti-BC conta com a participação direta de Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, que montou uma espécie de Ministério da Fazenda paralelo e gostaria de ver André Lara Resende no cargo. Exagerada e fora do tom, a explicação de tanta animosidade contra Campos Neto pode estar no fato de ele ser visto pela esquerda mais radical como um representante do inimigo. É citado com frequência o fato de ele ter sido flagrado, em janeiro, como um participante de um grupo de WhatsApp de ministros de Bolsonaro. A pessoas próximas, Campos Neto diz que havia muito tempo não fazia comentários nesse grupo, a não ser banalidades como “Feliz Natal” e “Parabéns”.