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Em grande medida, as eleições municipais representam um bom teste para avaliar a capacidade de liderança de Jair Bolsonaro entre o público conservador. Mesmo sendo alvo de várias e complicadas ações na Justiça, ele segue firme no jogo. Acredita reverter a condição de inelegível para 2026 e tenta transferir seu capital político a uma série de candidatos no pleito deste ano. Até o momento, de forma surpreendente para quem apostava na capacidade do ex-capitão de seguir no comando absoluto da turma à direita, surgiram dúvidas sobre isso no horizonte. Em São Paulo, Pablo Marçal (PRTB) sobe nas pesquisas, roubando votos principalmente de Ricardo Nunes (MDB), prefeito candidato à reeleição, apoiado pelo ex-presidente. No Rio de Janeiro, berço político dos Bolsonaros, a situação é ainda mais complicada. Concorrente ungido pela família, Alexandre Ramagem (PL), ex-chefe da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, pontua com apenas 9%, muito atrás do favorito, Eduardo Paes (PSD), que caminha para mais um mandato à frente da istração carioca e com chances reais de liquidar a fatura em primeiro turno.
Em uma espécie de efeito rei Midas ao contrário, o condão de Bolsonaro sobre seus ungidos parece não ter o resultado esperado também em outras capitais onde o mito decidiu lançar ou apoiar candidatos às prefeituras. Mesmo em turnê pelo país desde o início do ano, arrastando apaixonadas multidões por onde a, vale lembrar, o ex-presidente tem se deparado com desempenhos pífios de seus escolhidos em pesquisas de intenção de voto em cidades importantes. No Recife, tudo caminha para uma derrota acachapante do ex-ministro e sanfoneiro Gilson Machado (PL). João Campos (PSB), atual prefeito, lidera com folga a corrida. Em João Pessoa, Marcelo Queiroga (PL), que ocupou a pasta da Saúde na gestão ada e contou com a presença do ex-chefe no lançamento oficial da campanha, amarga ainda posições intermediárias. Na capital do Ceará, o atual líder, Capitão Wagner (União Brasil), que no ado era aliado de Bolsonaro, tem procurado hoje manter distância dele.
Claro que é cedo para conclusões definitivas, mas o quadro atual inegavelmente aponta para uma nova face do eleitorado à direita no país. No caso de São Paulo e de outras capitais, candidatos muito competitivos correm na faixa conservadora, mas não necessariamente ligados à liderança de Bolsonaro. Na maior metrópole do país, aliás, fruto da alta temperatura do cabo de guerra entre as campanhas de Marçal e Nunes, o coach trocou farpas pesadas nas redes sociais com os filhos do ex-capitão. Na noite da última quarta-feira, os dois lados ensaiaram um armistício. Em comum, esses políticos repetem várias das bandeiras, símbolos e valores do ex-presidente, sem ter de lidar com a rejeição gerada pelo desgaste de uma gestão conturbada no Planalto e com os problemas do ex-capitão na Justiça. “Eles têm o bônus do bolsonarismo, sem o ônus do Bolsonaro”, define Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
Especialistas já batizaram o movimento como “nova cepa da direita”. O grupo entoa os velhos gritos de guerra dos mais conservadores, a exemplo do feroz discurso antipetista, mas acrescentou pautas da atualidade, em especial as ligadas ao desejo de empreender e de obter uma rápida ascensão social. Um dos modelos mais irados são os influenciadores digitais, a turma que muitas vezes consegue fortuna com um celular na mão. A ojeriza ao establishment ganhou contornos ainda mais raivosos em meio ao movimento. “O eleitor de Bolsonaro era um antissistema, o de agora é um niilista convicto”, compara Eduardo Grin, cientista social e professor da FGV.
No bolo do eleitorado que compõe hoje a direita no país, preenchido por evangélicos, liberais e militaristas, entre outros grupos, o discurso rebelde e antissistema ressoa de forma mais efetiva entre os jovens. Não apenas por terem menos a perder e, por consequência, aderirem com mais facilidade a extremismos e propostas irresponsáveis, mas por um aspecto fundamental: a familiaridade com o ambiente tecnológico. O letramento digital da juventude reforça a lógica de rede em que se criam comunidades com um propósito, cada usuário se vê engajado no objetivo de espalhar uma mensagem com um potencial ilusório de “hackear” o sistema. Além disso, pesquisas qualitativas apontam que esse eleitorado é mais identificado entre os que ganham mais de cinco salários mínimos e na classe C, que se vê pressionada pela dificuldade de atingir metas materiais, como ter a casa própria. O público também é majoritariamente masculino, composto por homens que sentem ter perdido o poder de decisão num mundo no qual o patriarcado é cada vez mais questionado e relativizado.
Representante mais barulhento dessa onda, Pablo Marçal fez fama como coach e usa, na atual campanha, o mesmo tom de discurso motivacional, prometendo progresso e riqueza aos seus eleitores. Notam-se ali elementos do protestantismo clássico e da teologia da prosperidade. “Ele mostra uma vida de luxo, mas não se porta como uma pessoa da elite”, analisa o cientista político Bruno Soller. Uma de suas claras fontes de inspiração é Javier Milei, o excêntrico presidente da Argentina. As semelhanças vão desde a força das redes sociais como meio de propagação de discursos, ando pela estratégia de campanha, até a forma de “fisgar o eleitor” com um tom agressivo e direto.
Como mostra o que ocorreu com Marçal na última terça-feira (27), o clássico corpo a corpo com os eleitores virou peça secundária na campanha. Na ocasião, o coach prometeu uma caminhada pela Avenida Paulista que, na prática, durou metade de um quarteirão e aglutinou cinco ou seis dezenas de pessoas na rua. Já o vídeo feito para as redes sociais do candidato teve 1,6 milhão de visualizações em menos de 24 horas. A forte presença dele na internet não foi abalada por uma decisão da Justiça que derrubou todos os seus canais, por suspeita de abuso de poder econômico na campanha. Quase imediatamente, Marçal abriu outros perfis que amealharam de forma rápida milhões de seguidores.