O Globo
Críticas de advogados ao “fatiamento” e a supostas tentativas de “pesca probatória”, contra uma denúncia que se valeu de um “colaborador” e buscou apontar o “domínio” de alguns investigados sobre as ações criminosas. Teses e expressões jurídicas com essas, que pautaram o início do julgamento da ação sobre a suposta trama golpista no Supremo Tribunal Federal (STF), guardam paralelos com outras duas ações penais de vulto: a do mensalão e a da Operação Lava-Jato, que alcançaram grande repercussão na Corte neste século.
Os casos têm uma série de peculiaridades e diferenças entre si, de acordo com juristas e criminalistas, a começar pelos crimes apurados, enquanto o mensalão abordou corrupção, desvio de verba pública e gestão fraudulenta, e a Lava-Jato acrescentou a isso acusações de cartel, o inquérito do golpe, que mira o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados, se concentra em crimes contra a democracia e de dano ao patrimônio. Ainda assim, segundo os especialistas, certos elementos do “juridiquês” tiveram tamanho impacto em cada episódio que geraram desdobramentos para além dos respectivos julgamentos.
Além de servir de munição para casos posteriores, parte do arsenal usado por defesa e acusação nesses processos acabou incentivando mudanças na legislação e na jurisprudência do Supremo, diante da avaliação de que seu uso gerou problemas ou distorções nos respectivos processos.
A defesa de Jair Bolsonaro alega que a Procuradoria-Geral da República (PGR) teria praticado um expediente chamado “document dump” (“despejo de documentos”, em tradução literal), caracterizado pela inserção de um excesso de informações anexas à denúncia. O advogado Celso Vilardi disse, na sessão em que o ex-presidente se tornou réu, que a acusação deixou a defesa frente a um “quebra-cabeça” com “45 mil documentos”, e que não houve prazo suficiente para análise.
O criminalista Fernando Hideo, doutor em Direito Penal pela PUC-SP, explica que a alusão a “document dump” é uma linha de defesa mais recente, que não apareceu em casos como o mensalão e a Lava-Jato:
— É uma estratégia deliberada de uma das partes para inviabilizar a defesa da parte contrária, como se ela ficasse obrigada a procurar uma agulha no palheiro. Mas há casos de maior complexidade e com muitos réus, o que leva à produção de um arsenal de documentos. No caso atual, acho o volume condizente.
Outro conceito citado pela defesa de Bolsonaro, e por vezes também descrito no bom português como “pesca probatória”, refere-se a uma suposta tentativa de investigadores de promover uma devassa em arquivos pessoais dos acusados.
A prática, segundo os advogados, permite posteriormente pinçar elementos que se enquadrem nas teses de acusação. Ela é considerada ilegal por ferir a garantia de privacidade e de sigilo dos dados, que só pode ser afastada quando há suspeita fundamentada de conduta ilícita.
A ideia também foi usada pela defesa de Lula na Lava-Jato, que acusou os procuradores de fazerem uma “varredura” no entorno do petista atrás de indícios que atestassem um “castelo teórico preestabelecido”.
A definição da Primeira Turma do STF, composta por cinco ministros, para julgar a denúncia do caso foi contestada pela defesa de Bolsonaro e de outros acusados. A alegação é de que o plenário, com 11 ministros, seria o ambiente adequado para o julgamento, já que o caso trata de supostos crimes cometidos quando Bolsonaro era presidente.
Em 2023, porém, o STF alterou o regimento interno para permitir o julgamento de ações penais nas suas duas Turmas, apenas o presidente da Corte não compõe nenhum colegiado. O criminalista Fernando Hideo lembra que esse método ainda permite que eventuais embargos, uma espécie de recurso apresentado pelas defesas em caso de condenação, sejam analisados no plenário:
— Permite mais celeridade, ponto crítico no mensalão, dada a complexidade do tema e o número de réus.
Em paralelo, bolsonaristas pressionam o Congresso a pautar um projeto que prevê anistia aos condenados pelo 8 de Janeiro. A medida, embora não afete diretamente os casos do ex-presidente no STF, é vista como uma tentativa de esvaziar o peso da invasão à sede dos Poderes no enredo da denúncia. A PGR viu o episódio como o ponto culminante de uma série de ações para desacreditar o sistema eleitoral e criar um ambiente propício a um golpe.
A anistia depende de legislação aprovada no Congresso e já delimita o caso concreto ao qual se aplica, enquanto o indulto, feito pelo Executivo e aplicado a réus do Mensalão, tem sua aplicação analisada pelo Judiciário em cada caso.
A defesa de Jair Bolsonaro alega que a Procuradoria-Geral da República (PGR) teria praticado um expediente chamado “document dump” (“despejo de documentos”, em tradução literal), caracterizado pela inserção de um excesso de informações anexas à denúncia. O advogado Celso Vilardi disse, na sessão em que o ex-presidente se tornou réu, que a acusação deixou a defesa frente a um “quebra-cabeça” com “45 mil documentos”, e que não houve prazo suficiente para análise.
O criminalista Fernando Hideo, doutor em Direito Penal pela PUC-SP, explica que a alusão a “document dump” é uma linha de defesa mais recente, que não apareceu em casos como o mensalão e a Lava-Jato:
— É uma estratégia deliberada de uma das partes para inviabilizar a defesa da parte contrária, como se ela ficasse obrigada a procurar uma agulha no palheiro. Mas há casos de maior complexidade e com muitos réus, o que leva à produção de um arsenal de documentos. No caso atual, acho o volume condizente.
Outro conceito citado pela defesa de Bolsonaro, e por vezes também descrito no bom português como “pesca probatória”, refere-se a uma suposta tentativa de investigadores de promover uma devassa em arquivos pessoais dos acusados.
A prática, segundo os advogados, permite posteriormente pinçar elementos que se enquadrem nas teses de acusação. Ela é considerada ilegal por ferir a garantia de privacidade e de sigilo dos dados, que só pode ser afastada quando há suspeita fundamentada de conduta ilícita.
A ideia também foi usada pela defesa de Lula na Lava-Jato, que acusou os procuradores de fazerem uma “varredura” no entorno do petista atrás de indícios que atestassem um “castelo teórico preestabelecido”.
A definição da Primeira Turma do STF, composta por cinco ministros, para julgar a denúncia do caso foi contestada pela defesa de Bolsonaro e de outros acusados. A alegação é de que o plenário, com 11 ministros, seria o ambiente adequado para o julgamento, já que o caso trata de supostos crimes cometidos quando Bolsonaro era presidente.
Em 2023, porém, o STF alterou o regimento interno para permitir o julgamento de ações penais nas suas duas Turmas — apenas o presidente da Corte não compõe nenhum colegiado. O criminalista Fernando Hideo lembra que esse método ainda permite que eventuais embargos, uma espécie de recurso apresentado pelas defesas em caso de condenação, sejam analisados no plenário:
— Permite mais celeridade, ponto crítico no mensalão, dada a complexidade do tema e o número de réus.
Em paralelo, bolsonaristas pressionam o Congresso a pautar um projeto que prevê anistia aos condenados pelo 8 de Janeiro. A medida, embora não afete diretamente os casos do ex-presidente no STF, é vista como uma tentativa de esvaziar o peso da invasão à sede dos Poderes no enredo da denúncia. A PGR viu o episódio como o ponto culminante de uma série de ações para desacreditar o sistema eleitoral e criar um ambiente propício a um golpe.
A anistia depende de legislação aprovada no Congresso e já delimita o caso concreto ao qual se aplica, enquanto o indulto, feito pelo Executivo e aplicado a réus do Mensalão, tem sua aplicação analisada pelo Judiciário em cada caso.
Implementada pela Lei de Organizações Criminosas, de 2013, a delação era novidade à época da Lava-Jato e foi amplamente usada para sustentar denúncias e pedidos de prisão preventiva. Um argumento usado na ocasião hoje também utilizado por advogados dos implicados na delação de Mauro Cid, é que as colaborações teriam ocorrido sob “coação” e sem “voluntariedade”.
Na sessão em que o STF recebeu a denúncia contra Bolsonaro, o ministro Luiz Fux chegou a criticar omissões de Cid nos primeiros depoimentos, o que exigiu que ele fosse ouvido, ao todo, nove vezes.
Juristas avaliam que há diferenças no volume de delações na Lava-Jato e no peso delas nos processos. O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini lembra que o “pacote anticrime” aprovado em 2019 definiu a delação como “meio de obtenção de prova” que precisa ser corroborado:
— Na Lava-Jato, não havia uma regra que impedisse decretar prisão ou medidas cautelares apenas com base na delação. A PGR agora buscou trazer outros elementos de prova sempre que cita a delação do Cid, opina.
Também notório na Lava-Jato, o dispositivo estava previsto para garantir o interrogatório de acusados que não atendessem intimação e foi usado pelo então juiz Sergio Moro para obrigar Lula a depor.
A medida gerou controvérsia, e o STF decidiu, dois anos depois, que a condução coercitiva é “incompatível com a Constituição” por violar o direito de ir e vir e a “presunção de não culpabilidade”. Para juristas críticos à Lava-Jato, a condução foi usada, junto com prisões preventivas, para induzir acordos de delação.
As defesas de acusados no caso do golpe alegam que Cid foi submetido a algo similar. Ele foi preso preventivamente em maio de 2023 e solto em setembro, após firmar a delação. Em 2024, em outra audiência, Moraes o alertou sobre risco de nova prisão em caso de “omissões”. O criminalista Miguel Pereira Neto, porém, avalia que Cid “havia delatado voluntariamente antes” e, por isso, os “alertas” de Moraes não configuram, em tese, coerção.
O termo em inglês, que pode ser traduzido como “guerra jurídica”, foi um dos pilares da defesa de Lula conduzida pelo então advogado Cristiano Zanin, que hoje preside a Primeira Turma do STF. Bolsonaro diz ser vítima de estratégia similar.
O conceito se refere a um “uso indevido dos procedimentos jurídicos para fins de perseguição política”, como escreveu Zanin em diferentes petições em processos da Lava-Jato. Um dos exemplos elencados foi o Power Point usado pelo então procurador Deltan Dallagnol, na apresentação da denúncia do tríplex do Guarujá, que atribuiu a Lula um papel de “comandante máximo” em supostos esquemas de corrupção que extrapolavam o caso.
O debate sobre o tribunal que deveria analisar ações da Lava-Jato, que permeou o caso, só acabou em 2021, quando o STF decidiu que a 13ª Vara Federal de Curitiba era “incompetente” para julgar Lula. Para o ministro Edson Fachin, não havia conexão explícita com desvios na Petrobras.
Réu no inquérito do golpe, Bolsonaro defende ser julgado na primeira instância. Neste caso, porém, uma decisão recente da Corte estabeleceu que políticos mantêm foro privilegiado para crimes relacionados ao mandato após deixar o cargo.
Mensalão
O então PGR Roberto Gurgel usou o conceito para implicar o ex-ministro petista José Dirceu como um dos líderes do mensalão. A teoria priorizou a posição hierárquica de Dirceu em lugar de provas diretas de envolvimento, expediente também usado na Lava-Jato contra Lula.
Já na denúncia do inquérito do golpe, o procurador-geral Paulo Gonet cita um documento achado na sala de Jair Bolsonaro, elencando razões para um estado de sítio, e diz que ele “reforça o domínio que este possuía sobre as ações” executadas por aliados para garantir “sua permanência autoritária no poder”.
— Não vejo isso como domínio do fato. A denúncia coloca uma prova de participação direta, e não um “deveria saber”, analisa o criminalista Miguel Pereira Neto.
Professor de Direito Penal na USP, Pierpaolo Cruz Bottini avalia que o uso correto do domínio do fato é para separar os autores dos “partícipes” com papel menor nos crimes:
— Já o ponto central agora é mostrar quando os atos deixam de ser preparatórios e am a configurar tentativa (de golpe), e a PGR aponta este início de execução nas discussões para justificar o uso da força.
Ponto de discórdia entre ministros na época do mensalão, o fatiamento dos votos foi proposto pelo então relator, Joaquim Barbosa. O método consistia em julgar o caso de acordo com os itens em que a denúncia da PGR estava dividida, o que deixou a “dosimetria” das penas para o fim, já que uma mesma pessoa poderia figurar em diferentes itens, por participar de mais de um crime.
O então revisor, Ricardo Lewandowski, defendia que os ministros votassem de uma só vez para todos os denunciados, “conforme a conduta de cada réu”, e não de acordo com os crimes, como Barbosa. No fim, o entendimento do relator, que era visto como uma forma de otimizar o julgamento, acabou sendo adotado.
Na atual denúncia do golpe, a PGR apresentou uma denúncia já fatiada, dividida em “núcleos”.
No mensalão, os ministros Rosa Weber e Luiz Fux argumentaram, ao votar pela condenação de acusados por corrupção iva, que o crime já se configurava quando ficasse provado o pagamento de vantagens a um agente público, mesmo que não fosse possível especificar uma contrapartida entregue por ele. Assim, bastava que o funcionário que recebeu propina pudesse retribuir com algum benefício ilícito, com base nas atribuições, os possíveis “atos de ofício”, do cargo.
O mesmo conceito foi aplicado pela Lava-Jato. A peça de acusação contra Lula no caso do tríplex do Guarujá citou diretamente agens do julgamento do mensalão. O MPF alegou que pagamentos da empreiteira OAS teriam o objetivo de influenciar “atos que se insiram no rol de poderes de fato” dos agentes públicos investigados, sem especificar contrapartidas concretas.
Em 2015, três anos após o fim do julgamento do mensalão, um indulto natalino da presidente Dilma Rousseff levou à extinção das penas de alguns dos condenados no caso, como José Dirceu, o ex-deputado Roberto Jefferson e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto.
Esse tipo de indulto, ao contrário da anistia, não foi dirigido especificamente a réus do mensalão. O decreto abarcava todos os condenados a penas inferiores a 8 anos em regime aberto, caso dos beneficiados.