Catadores de recicláveis se organizam em Brasília, mas não superam fim do maior lixão do país

Mulheres esteira em galpão em Brasília

Poder360

Cooperativas de reciclagem de Brasília enfrentam obstáculos financeiros e não conseguem se manter viáveis depois do fechamento do lixão da cidade, em 2018.

O Poder360 foi a um complexo que concentra 11 cooperativas de reciclagem. Fica a só 14 km do Congresso Nacional, na Estrutural, a região mais pobre do Distrito Federal.

São cerca de 460 cooperados que trabalham em turnos alternados das 8h às 18h. Lá, há 3 galpões. Muitos disseram ter mais renda quando trabalhavam como autônomos no lixão.

Na Corace, uma das cooperativas do centro, os funcionários receberam R$ 822 em abril por um sistema de rateio (divisão igual do lucro entre os cooperados). O valor é 37% menor que o salário mínimo vigente, R$ 1.320.

Enquanto atuavam no lixão, catadores disseram receber até R$ 3.000 mensalmente. Eles mesmos recolhiam os materiais, como alumínio, papel e plásticos, e vendiam diretamente para as empresas recicladoras.

As condições de trabalho naquele tempo, entretanto, eram insalubres. O ambiente era propício a doenças, tinha materiais perigosos, como resíduos hospitalares contaminados, cacos de vidros e metais enferrujados. Ainda havia o chorume, líquido derivado da decomposição de material orgânico.

Além das 11 cooperativas que se concentram nos galpões de reciclagem da Estrutural, há outras 10 em toda Brasília. São 21 no total. Todas têm CNPJ. São considerados pequenos negócios.

Todo o lixo coletado pelos empreendimentos a para a Central das Cooperativas de Trabalhadores de Materiais (Centcoop), que funciona como um centro de comercialização do que é reciclado.

O terreno para a construção dos galpões foi doado para os profissionais em 2010. As construções só ficaram prontas 10 anos depois, bancadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES).

O lixo chega às empresas a partir de contratos. Podem ser com órgãos públicos e também com outras companhias privadas, como shoppings.

As cooperativas não pagam aluguel, mas precisam arcar com os gastos de eletricidade, água, manutenção do equipamento, impostos e o rateio dos funcionários.

Ainda há despesas para levar o lixo que sobra da triagem para o aterro de Samambaia, outra região istrativa do Distrito Federal. O custo do transporte e aterramento é de R$ 830 por tonelada.

Os custos de energia e água para as 21 cooperativas são os que mais pesam para a Centcoop. Somaram R$ 625 mil em 2021 e 2022.

As cooperativas também lidam com a falta de segurança. Em março, a Centcoop foi invadida. Fios de cobre e duas televisões foram levados. O prejuízo foi de R$ 15.000.

A Centcoop acumula dívida de aproximadamente R$ 500 mil (somando  todos os empreendimentos ligados à cooperativa).

Mercado fraco

Segundo especialistas as questões que afligem os catadores da capital federal se explicam porque não há mercado consolidado para compra dos produtos de reciclagem no Brasil.

O presidente da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública, João Gianesi Netto, diz que o fechamento de lixões em escala nacional é uma tendência.

O número caiu de 3.257, em 2018, para 2.407, em 2022, segundo levantamento da Associação Brasileira de Empresas Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre).

Para Netto, é preciso fomentar um mercado interessado em comprar os materiais coletados por quem está na catação.

O executivo disse que as poucas companhias de reaproveitamento que existem se concentram próximas aos litorais do país e nos grandes centros urbanos, aumentando os custos com transporte das cooperativas que ficam no interior.

O setor movimenta anualmente R$ 1,5 bilhão. Cada organização de reciclagem (entre a iniciativa pública e privada) fatura cerca de R$ 725 mil ao mês.

O alumínio é o material mais lucrativo para a catação. Leia a comparação do preço por kg:

  • alumínio – R$ 4,77;
  • plástico – R$ 1,73;
  • outros metais – R$ 1,58;
  • papel – R$ 0,81;
  • vidros – R$ 0,21.

Apesar de o papel ter o 2º menor valor agregado, é o mais reaproveitado pela indústria da reciclagem no Brasil. São 298 mil toneladas por ano, ​​segundo diagnóstico sobre manejo de resíduos sólidos urbanos elaborado pelo governo federal em 2021.

Plásticos (205 mil toneladas) e vidros (100 mil toneladas) vêm em seguida. Mesmo estando entre os mais caros, os metais têm um reaproveitamento menor: 97 mil toneladas.

Além do valor, cada produto tem sua complexidade: vidro é pesado e quebra facilmente; o papel estraga com água e seu armazenamento deve ser cuidadoso.

Das 67 milhões de toneladas de lixo produzidos no Brasil por ano, somente 1,3 milhão de tonelada é reciclado. A proporção de reaproveitamento é de 2%.

A maior parte das empresas (48%) responsáveis por recolher os materiais são do setor privado. Coletam 900 mil toneladas por ano.

As associações de catadores vêm em seguida. Com 35% de participação, manejam 656 mil toneladas. Todas, entretanto, têm contrato com as prefeituras. Isso se dá porque, segundo a lei, é dever dos municípios istrar os rejeitos sólidos de seus determinados territórios.

A maioria dos trabalhadores da reciclagem brasileiros (56%) é formada por mulheres. Representam um total de 33.381 profissionais. Homens são 26.228, equivalente a 44% do todo. Os dados são do mais recente anuário da reciclagem, elaborado pela LCA Consultores e referente ao ano de 2021.

Eis a íntegra dos dados.

A renda média de quem trabalha com reciclagem é de R$ 1.444 por mês, R$ 124 a mais que o salário mínimo.

Reduzir, Reutilizar, Reciclar

O que o Brasil deveria fazer: se inserir nesse mercado para dar início à chamada economia circular. O modelo se refere ao processo de produzir lixo e recolocá-lo na cadeia industrial depois do descarte. Em 3 palavras: “reduzir, reutilizar, reciclar”. Isso só pode acontecer se esse modelo se equalizar com ganhar dinheiro, dizem os especialistas.

O efeito criado pela diferença dos preços é um desperdício de alguns tipos de lixo, enquanto outros são mais reciclados. As latinhas de alumínio, como as de refrigerante, por serem mais valiosas, são bastantes disputadas: 100% delas foram recicladas em abril de 2023, segundo dados da Associação Brasileira do Alumínio (Abal) obtidos pela Recicla Latas.

Além disso, a concentração de preços em poucos materiais limita a atuação dos catadores, segundo a professora da Universidade de Brasília (UnB) Thérèse Hofmann, doutora em Desenvolvimento Sustentável.

“Para montar qualquer cadeia produtiva, tem que ter um ciclo. Tem que ter um volume [de material] que justifique aquele ciclo”, disse Hofmann.

No complexo de reciclagem do DF, funcionários descreveram a dificuldade que tinham em vender papel e papelão. Afirmam que o preço do produto despencou depois da pandemia. A comercialização não vale mais a pena, afirmam.

Além da consequência para os trabalhadores dos resíduos, há impactos ambientais. O acúmulo de qualquer material na natureza por si já é prejudicial por causa do tempo que leva para se decompor.

Também há questões tributárias que impedem o crescimento da indústria recicladora no país, como afirma André Vilhena, engenheiro químico consultor em economia circular. Segundo ele, um produto reciclável sofre aplicação de taxas quando é originalmente produzido e também quando é reciclado. Isso desestimula a transformação dos resíduos.

O cenário atual ainda precisaria remunerar o catador por outros serviços, segundo a análise do presidente da Associação Nacional dos Catadores (Ancat), Roberto Rocha. Ele disse que os profissionais precisam receber dinheiro pelo serviço de educação ambiental e limpeza pública que prestam à sociedade. Somente a venda de resíduos não é suficiente para os trabalhadores.

Outro ponto que Rocha defendeu ser fundamental para o setor é a capacitação. Seria necessário ensinar os recolhedores de resíduos a gerir modelos de negócios para aumentar a capacidade de produção das cooperativas. A transição entre lixão e cooperativa precisaria também abarcar o aprendizado corporativo.

Rocha projeta que muitos empregos seriam criados no Brasil caso o mercado fosse funcional. Ainda fala em bastante dinheiro injetado na economia, inclusive com a exportação de matéria-prima.

Para ele, a falta de organização do setor cria situações que se assemelham ao ado dos catadores nos lixões: “Você pega um galpão de uma cooperativa –que não consegue remunerar na maioria das vezes– enche de material reciclado e acaba virando a mesma coisa de um lixão”.

Rotina

Os profissionais dos galpões da capital federal am o dia enfileirados separando toneladas de resíduos que chegam nas grandes esteiras de coleta. Do galpão, o material é compactado e revendido para as fábricas de reaproveitamento.

Os catadores não dão conta de pegar todo o material reciclável. Isso se dá mesmo com grande agilidade.

Enquanto recolhem um material com uma mão, já encaminham outro para os tonéis de descarte adequado.

Lúcia Fernandes, 47 anos, é presidente da cooperativa Corace. Natural do interior do Ceará, veio para o Distrito Federal em 1982. Trabalha com reciclagem desde 2002, quando começou a recolher materiais no Lixão de Brasília com seu ex-marido.

Lúcia diz que houve um sentimento generalizado de tristeza entre os catadores quando o lixão de Brasília foi fechado: “Era como se tivesse morrido alguém”.

Com o encerramento do vazadouro, os catadores foram incentivados pelo governo do Distrito Federal a irem para os galpões. Naquela época, pagavam aluguel. Foi aí que começaram a se organizar em cooperativas.

“O 1° rateio que a gente recebeu foi R$ 77 por 9 dias trabalhados”, afirmou Fernandes.

A ex-catadora reconhece a importância de se ter fechado o lixão, especialmente por conta da diminuição dos impactos ambientais e à saúde. Porém, defende que era preciso uma transição eficiente entre trabalhar de forma autônoma e se inserir no modelo de negócios da cooperativa.

“Foi uma perda muito grande com o fechamento, mas era uma coisa inevitável. Querendo ou não, era para o bem da população. Hoje, muitos [catadores] não entendem que é uma questão de saúde, uma questão de meio ambiente”, disse.

Segundo Lúcia, houve diálogo entre o governo distrital e os catadores. Foram criados uma comissão e um grupo de trabalho quando começou o processo de fechamento do lixão, antes de 2017. Ela diz que, apesar do esforço, não houve inserção dos trabalhadores no novo modelo de negócios.

Lúcia Fernandes disse que sua cooperativa atualmente não tem lucro por causa das despesas. Na verdade, trabalha sempre com o prejuízo para manter os colaboradores.

“Eu não sonhei com catador recebendo R$ 800. Não foi isso que acreditei que um dia a gente pudesse fazer”, disse a presidente da Corace.