Como Gilmar Mendes virou parceiro da CBF, foi decisivo na queda de Ednaldo Rodrigues e mantém vínculo com a entidade

Estadão

O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, foi decisivo para a ascensão de Ednaldo Rodrigues no comando da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em uma gestão que estreitou laços com o ministro por meio de um contrato com a instituição de ensino que pertence a ele. Mas, na última semana, uma decisão do magistrado abriu caminho para a derrocada de Ednaldo.

Gilmar era autor de liminar que manteve o presidente da CBF no cargo. No início do mês, ele rejeitou tentativas de retirar Ednaldo do posto. A proteção dada por decisões do ministro do STF, no entanto, terminou ali. Na mesma decisão, Gilmar transferiu o caso para o Tribunal do Rio de Janeiro após surgirem denúncias de s falsificadas em documentos usados pelo dirigente da CBF para legitimar sua posição no comando da entidade.

O despacho de Gilmar foi interpretado por outros dirigentes de futebol como um recado de abandono do magistrado ao agora presidente afastado.

A ideia de encaminhar o caso da suposta falsa ao TJ-RJ foi seguida por uma debandada de cartolas, advogados e parlamentares da “bancada da bola” no Congresso.

Na avaliação de um auxiliar de Ednaldo Rodrigues, o ministro teria elementos para não receber o pedido de afastamento e arquivá-lo. Ou pelo menos para aliviar a pressão abrindo um prazo para manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Em vez disso, decidiu enviar o caso diretamente ao TJ-RJ com determinação de “apuração imediata e urgente”. A Corte fluminense já tinha barrado Ednaldo uma vez e o mundo do futebol entendeu que Gilmar entregou o presidente da CBF “de bandeja”.

Até então, o cartola apostava nas decisões do ministro para seguir à frente da entidade. Foi de Gilmar a decisão que reverteu, em janeiro de 2024, um ordem do tribunal do Rio, do mês anterior, de afastamento do presidente da CBF por irregularidades na eleição vencida por ele em 2022.

A caneta de Gilmar atendeu Ednaldo meses depois de a faculdade da qual o ministro é sócio, o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), virar parceira da CBF. Em agosto de 2023, a instituições celebraram contrato para a gestão dos cursos da CBF Academy.

Apesar do indicativo de rompimento com o dirigente que colocou o IDP dentro da CBF, o ministro caminha para manter a influência sobre a entidade máxima de futebol. O contrato firmado entre a confederação e o instituto de Gilmar tem dez anos de vigência. Ou seja, só termina em 2033.

Procurado, Gilmar Mendes não comentou. Em entrevista ao UOL, o ministro negou conflito de interesses no fato de julgar temas relacionados à CBF e, ao mesmo tempo, ter um contrato com confederação. Também não fez reparos aos termos da parceria.

“Não há conflito de interesse em relação a esta questão. O IDP é uma instituição extremamente conceituada no Brasil e no exterior. Neste caso, (o IDP) estava organizando e cedendo seu bom prestígio à CBF, e não o contrário”, disse.

Autor da ação que resultou na destituição de Ednaldo Rodrigues, o vice-presidente da CBF Fernando Sarney conversou com Francisco Mendes, filho do ministro e diretor do IDP, no início de sua articulação contra o comando da CBF.

A informação foi publicada pela Revista Piauí e confirmada pelo Estadão. A conversa teria servido para Sarney, filho do ex-presidente da República José Sarney, demonstrar que a situação na CBF era insustentável e que o grupo rival não tinha planos de expandir a briga para além de Ednaldo.

Com os desdobramentos da crise e com a necessidade de eleição de um novo presidente para a CBF, cartolas dizem que os sinais de Gilmar são de que ele não se opõe ao nome do presidente eleito da Federação Roraimense de Futebol (FRF), o médico Samir Xaud. O possível candidato também agrada a Fernando Sarney, designado interventor e a quem caberá conduzir o processo eleitoral.

Outros nomes tentam correr em paralelo. Um deles é o de Reinaldo Carneiro Bastos, presidente da Federação Paulista de Futebol. Além disso, um grupo de cartolas e congressistas tenta emplacar como nome de consenso das regiões Norte e Nordeste a presidente da federação paraibana, Michelle Ramalho. Ela seria a primeira mulher a chefiar a CBF e no momento em que a Copa do Mundo feminina será realizada no Brasil, em 2027.

Parceria IDP-CBF era ‘tabelinha como a de Garrincha e Pelé’

A parceria firmada pela CBF e pelo IDP, em 2023, prevê que a faculdade de Gilmar Mendes ficará com 84% do faturamento da CBF Academy. Criada em 2016, ela é um braço de formação e desenvolvimento profissional voltado ao futebol.

Caso o futuro presidente da CBF queira rescindir a parceria, o acordo estipulou pagamento de 20% da receita do ano anterior, multiplicada pelo total de meses faltantes para a vigência do contrato. Em 2024, a receita bruta da F Academy foi de R$ 5,9 milhões. Em 2023, R$ 9,2 milhões.

O contrato tem até uma cláusula anticorrupção que define que as duas partes “não compartilham, compactuam ou autorizam práticas ilícitas, tais como, mas não se limitando, a suborno, fraude e lavagem de dinheiro”.

O acordo foi assinado por Ednaldo Rodrigues, pela CBF, e por Francisco Mendes e Hugo Teixeira, pelo IDP. Diretor da faculdade, Teixeira em seguida foi alçado a assessor direto de Ednaldo na entidade do futebol.

“E em uma tabelinha que, espero, seja das melhores, como as que tivemos com Garrincha e Pelé, Bebeto e Romário, Ronaldo e Rivaldo, e agora, CBF Academy e IDP. Queremos multiplicar e expandir. O futebol brasileiro é um dos ativos mais importantes que temos e é conhecido no mundo todo. E a CBF Academy tem papel fundamental nesse momento em que o futebol se profissionaliza em todo o mundo. O futebol hoje é um grande negócio, além de ser arte e magia também”, afirmou, na ocasião, Francisco, o filho de Gilmar que chefia o IDP.

A atuação do ministro Gilmar Mendes em casos envolvendo a CBF levantou questionamentos sobre sua imparcialidade porque o IDP tem contrato com a entidade. Congressistas da direita tentam emplacar Is sobre a entidade máxima do futebol e aproveitá-las para mirar no ministro.

Para o professor de Direito Constitucional Vladimir Feijó, da UniArmaldo, mesmo sendo uma prestação de serviços educacionais, o vínculo financeiro entre as duas instituições exige atenção.

Segundo Feijó, o Código de Processo Civil prevê que juízes devem se afastar de casos quando têm interesse direto ou indireto na causa — e isso vale inclusive quando há apenas a aparência de parcialidade.

“Essa aparência de parcialidade já é suficiente para justificar a avaliação da necessidade de impedimento”, afirmou.

Ele lembra que o próprio STF já reconheceu, em decisões anteriores, que vínculos econômicos ou institucionais podem justificar o afastamento de ministros, mesmo que não haja envolvimento direto com o processo.

No caso da CBF, Gilmar tomou uma decisão monocrática e só meses depois o tema foi levado ao plenário. Para Feijó, o ponto principal não é a legalidade do contrato, mas a ética institucional e a confiança pública nas instituições.

“O problema, portanto, não é a atividade educacional em si, mas o potencial de interferência que a existência de relações comerciais pode representar para a percepção pública da imparcialidade do Judiciário, algo que é essencial à legitimidade das decisões”, frisou.