Saúde falha em pontos sensíveis e fragiliza a situação de Nísia Trindade

FRACASSO - Ação contra a dengue: o número de casos quadruplicou em 2024

A gestão da saúde da Presidência de Jair Bolsonaro foi um desastre humanitário. A pandemia de Covid-19, que deixou quase 700.000 mortos entre 2020 e 2022, escancarou o desleixo do governo, que, na contramão da corrida global para vacinar a população, abraçou o negacionismo, promoveu tratamentos sem respaldo científico e trocou o comando do Ministério da Saúde três vezes, incluindo a nomeação de um general, Eduardo Pazuello, absolutamente inexperiente em políticas sanitárias. As fake news em torno dos imunizantes, que demoraram a ser comprados, eram a regra. Medicamentos ineficazes, como a hidroxicloroquina, viraram bálsamos (inúteis, reafirme-se) do dia para a noite. O fracasso foi amplamente explorado pela campanha de Lula em 2022. “Depois de um triste período de negacionismo e descrença na nossa ciência, o governo e o Ministério da Saúde voltarão a cuidar do povo”, disse o presidente ao tomar posse.

Dois anos depois, no entanto, o governo tem pouco a comemorar e está a um o de trocar o comando da pasta. A socióloga Nísia Trindade, ex-­presidente da Fiocruz, respeitada no meio acadêmico e de reputada capacidade de gestão, tem tido dificuldades de pôr os cuidados com a saúde pública no trilho, ainda que tenha conseguido resgatar a sensatez científica, ao avesso dos disparates. A realidade, contudo, insiste em desafiar os planos inicialmente desenhados, que podem terminar como meras promessas. Uma pesquisa do instituto Ipec divulgada em dezembro mostra que a área é uma das mais mal avaliadas: 44% consideram o trabalho “ruim ou péssimo”; 26% dizem ser “ótimo ou bom”; e somente 28% colam o rótulo de “regular”. A avaliação negativa, a título de comparação, é semelhante às da segurança pública (45%) e do combate à inflação (47%).

O mais decepcionante para a istração petista é que a pasta vai mal exatamente onde prometeu brilhar: a vacinação. Das dezesseis metas de imunização no calendário infantil obrigatório, apenas três foram atingidas em 2024: BCG, poliomielite oral e primeira dose da tríplice viral. Para piorar, o principal entrave ao avanço da cobertura é a falta de doses nos postos de saúde, quase dois em cada três municípios (64%) relataram alguma escassez, de acordo com levantamento feito em dezembro pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM). As três maiores queixas são referentes às vacinas contra catapora (52%), covid-19 para adultos (25%) e DTP (18%), que previne difteria, tétano e coqueluche. “Todo mês, a ministra vai à TV divulgar as campanhas nacionais, mas o governo não reconhece publicamente a escassez e empurra a responsabilidade aos estados e municípios”, critica Paulo Ziulkoski, presidente da CNM.

As autoridades, como de hábito, se defendem apontando o dedo para a herança do bolsonarismo, apesar de metade do atual mandato já ter ado. Responsável pela compra e distribuição das doses, o ministério trata os episódios de carência como pontuais. Atribui os problemas a falhas dos fornecedores, desafios logísticos, desordem nos contratos e a péssima mensagem transmitida para a sociedade pela turma anterior. “O fortalecimento do discurso antivacina prejudicou muito a proteção contra a Covid-19 e impacta, ainda hoje, na cobertura de outros imunizantes”, diz Eder Gatti, diretor do Programa Nacional de Imunizações do ministério.

Os tropeços na vacinação chamam atenção, mas não são os únicos. Um problema gravíssimo é o avanço da dengue: as mortes subiram de 1 179 em 2023 para 5 972 no ano ado, enquanto os casos quadruplicaram, de 1,6 milhão para mais de 6,6 milhões. O argumento para o desastre: as mudanças climáticas, principalmente no regime de chuvas, e o saneamento básico precário em muitas regiões vêm contribuindo para a disseminação da doença — que não deve refluir no ano que se inicia. A propagação da covid-19, ainda que em patamares longe do pânico, também preocupa. Houve picos de casos no primeiro trimestre de 2024 e, novamente, no final do ano — na primeira semana de dezembro foram mais de 20 000 registros da infecção, uma alta de 60% em relação aos sete dias anteriores e a maior onda desde março.

O mau desempenho em questões sensíveis é natural fermento para movimentações políticas. Desde o início do mandato, o cargo de Nísia Trindade é cobiçado pelo Centrão, em especial pelo PP do presidente da Câmara, Arthur Lira. A sigla já comandou a Saúde no governo Michel Temer (MDB), com Ricardo Barros e Gilberto Occhi, depois de longa hegemonia do PT nas duas gestões iniciais de Lula e Dilma. O principal motivo para a cobiça é o volume de recursos movimentado pelo ministério, e não o interesse em resolver os problemas do setor. Surpresa? Nenhuma. Segundo maior orçamento de toda a Esplanada neste ano (210,5 bilhões de reais), atrás apenas da Assistência Social (285,8 bilhões de reais), a pasta é também a que concentra o maior volume de emendas parlamentares: 60% dos 40 bilhões de reais pagos em 2024 saíram de seus cofres.

Não por acaso, Nísia caminha na corda bamba, em frágil equilíbrio, citada à exaustão na bolsa de apostas para a reforma ministerial que deve ocorrer ao longo do ano. Outro nome em evidência, Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação, já recebeu o aviso de demissão de Lula e será substituído pelo marqueteiro Sidônio Palmeira. Arthur Lira, terminando seu mandato como presidente da Câmara em fevereiro, ou a ser cogitado para a Saúde, mas é difícil que aceite, o mais provável é emplacar um aliado. O problema, à margem da resistência de Lula em politizar um posto relevante: contornar o PT, que tem ampla influência na pasta. O número 2 do ministério, o secretário-­executivo Swedenberger Barbosa, foi o braço direito de José Dirceu quando ele chefiou a Casa Civil no governo Lula. O ex-ministro da Saúde sob Dilma e hoje titular de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, bancou a nomeação de Nísia e emplacou vários detentores de cargos de segundo e de terceiro escalão, vem daí, aliás, boa parte da motivação para as escaramuças frequentes entre ele e Arthur Lira.

A ministra se defende como pode. Em balanço no final de 2024, fez questão de lembrar que, apesar dos relatos de desabastecimento, a vacinação aumentou em relação a 2022, último ano de Bolsonaro. Também citou a redução da mortalidade materna, a recertificação de país livre do sarampo e a retomada do Farmácia Popular, que distribui 39 medicamentos a 70 milhões de brasileiros. Os sucessivos tropeções, porém, e não há como escondê-los, vão minando a ministra. Os aliados de Bolsonaro não perdem chance de atacar, especialmente nas redes sociais. Com deboche, retrucaram o infeliz comentário de que a explosão da dengue estivesse atrelada ao fenômeno El Niño. “Em 2024, mais casos de dengue do que nos últimos oito anos. El Niño ou El Nísia?”, postou o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga. “A alta em casos de dengue vem desde 2023, e o governo não deu a mínima”, disse ele. O próprio Bolsonaro também tira uma casquinha. “Numa pandemia sob comando da organização completa (o PT), o país já teria sido destruído, sob todos os aspectos: saúde, economia e liberdade do povo”, postou no final de 2024.