Por Naldinho Rodrigues*
O músico e poeta Lúcio Barbosa, radicado em Itapecerica da Serra (SP), há décadas, faleceu no último dia 27 de agosto de 2024. Ele era natural da cidade baiana de Senhor do Bonfim. Entre outras lindas obras, uma das que mais se destacou, certamente, foi a canção “Cidadão”. Lúcio era o compositor da música que até hoje é sucesso nas vozes de Silvio Brito, Zé Geraldo e Zé Ramalho. Lúcio Barbosa foi morador do alto da maravilha.
Tornou-se conhecido na música popular brasileira como autor e compositor. Seu grande êxito aconteceu em 1979, quando sua música “Cidadão” foi gravada pelo cantor e compositor Zé Geraldo. Essa composição conheceu diversas regravações, inclusive, na voz do rei do baião Luiz Gonzaga. Lúcio Barbosa compôs “Cidadão” como homenagem a um tio que era pedreiro. A letra traz à análise, o preconceito e a discriminação por que am os nordestinos nas grandes cidades do país, em especial os que se dedicam à mão de obra da construção civil. Na letra, Lúcio relata que as diferenças sociais não permitem um tratamento de respeito e valorização do trabalhador braçal. Os poderosos, os mais abastados, ficam indiferentes à sua sorte.
É a exploração de uma sociedade capitalista e injusta. Pouco importam as dificuldades por que am os operários para chegarem ao local de trabalho e exercerem seu ofício. Sequer percebem que a presença deles é feita num processo desgastante e penoso no uso do transporte público nas idas e vindas do trajeto casa/trabalho. No caso da letra da música, esse trabalhador apanha quatro conduções por dia, duas para vir e duas pra voltar para casa. E segue a letra: concluída a obra, o operário contempla maravilhado o edifício que ajudou a ser erguido. Sente uma ponta de orgulho do seu trabalho. Mas eis que se surpreende com a interpelação de um cidadão, questionando porque ele estava ali, parado, observando, o prédio recém-inaugurado.
Suspeita, por sua condição social de inferioridade, que sua intenção é de roubar. Essa postura, muito recorrente no nosso cotidiano, revela bem a forma como os pobres, e nesse particular os nordestinos de baixa renda, só tratados, menosprezados e humilhados. Aquele estabelecimento de ensino foi construído para os ricos. Interessante que o personagem, por si mesmo, já se exclui da condição de cidadania.
“Cidadão” é aquele que tem poderes para alijá-lo da sua convivência social. “Cidadão” é aquele que determina sua vida sem a oferta do que lhe é de direito: moradia digna, educação e saúde. Ele não se enxerga como “cidadão”. As esperanças de que ali poderia ter um melhor padrão de vida para si e a família caem por terra. A igreja surge como refúgio derradeiro do seu padecimento. Um local onde o seu trabalho na construção fez valer verdadeiramente o seu esforço. Ali não há proibição da sua entrada.
Ali ele se integra aos acontecimentos religiosos e festivos: novenas e quermesse. Ali ele coloca nas mãos de deus suas esperanças de que o sofrimento seja amenizado. Apoia-se no exemplo de cristo, que se diz, como filho de deus , construtor de tudo o que há na terra, oferecendo ao homem todas as condições de bem viver dela, de forma igualitária, sem diferenças, sem privilégios para uns e privações para outros. Fechando a dramática realidade da composição, Lúcio Barbosa fala que a humanidade deu as costas até a quem deve a sua própria existência.
Nas casas falta solidariedade cristã em boa parte delas. O espírito de fraternidade que deve prevalecer entre os homens inexiste em muitos lares. Descanse em paz, Lúcio Barbosa o eterno “Cidadão”.
*Naldinho Rodrigues é locutor de rádio. Apresenta o programa Tocando o ado, pela Rádio Afogados FM, sempre aos domingos, das 5 às 8 da manhã, e escreve crônicas culturais semanalmente para o Blog PE Notícias.